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História de vida de Marlêne Wilson e do bairro do Pari

Filha de portugueses, a terceira de 11 irmãos, e mãe de quatro filhos. Nasceu no bairro no Pari, acompanhou seu crescimento e teve coragem para mudar sua vida profissional e artística. Conheça um pouco dessa história:

Q: Seus pais vieram de Portugal para São Paulo para tentar a vida aqui. Isso foi antes ou depois que você nasceu?
Mârlene:
Eu nasci no Pari, nesse mesmo local onde estou até hoje. Somos em 11 irmãos e eu sou a terceira. Meu primeiro irmão nasceu em Portugal, o segundo no Tucuruvi e eu e meus irmãos nascemos aqui, no bairro do Pari.

Q: Como foi sua infância?
Mârlene:
Meus pais são de Portugal e resolveram vir para cá fazer a vida. Meu pai trabalhava com construção e minha mãe ficava na venda do meu pai. Fui acostumada com o comércio e a cuidar dos meus irmãos. Quando criança, eu ajudava minha mãe no restaurante. Lembro que como eu era pequena eu tinha que subir no banquinho porque eu não tinha altura.
Brincávamos de amarelinha, de corda, de esconde-esconde, peteca, tamborete. Na rua não tinha nenhum perigo. Meus vizinhos colocavam as cadeiras nas portas à noitinha e ficavam ali cuidando da gente, tricotando, colocando conversa fora.
Eu lembro que essa rua era sem asfalto. Aqui na frente tinha uma antiga cocheira, que era onde a gente brincava de se esconder.
Na casa da minha mãe sempre teve muita gente. Além dos filhos, sempre tinha os amigos dos filhos. O almoço de domingo era enorme e, mesmo depois que eu casei, as mesas eram cheias. Dividíamos em três grupos: primeiro as crianças, depois as mulheres e por último os homens que ficavam batendo papo.
Quando eu era mais jovem tinha os cinemas que a gente costumava ir, aqui por perto. Tinha um parquinho de diversão. O cinema na Igreja do Pari. Quem ia para a missa já ganhava o ingresso para o cinema. Lá dentro era vendido pipoca, garrafa com groselha, doce de leite. E tinha um parquinho atrás da igreja, onde eu levava meus irmãos no balanço, na gangorra.

Q: Como era o bairro naquela época? Continua igual?
Mârlene:
Era muito gostosa aquela época no Pari. Hoje está tudo diferente, os moradores antigos estão tendo que se mudar, porque mudou o perfil desse bairro. Dois anos pra cá mudou completamente. Eu sou a única moradora que está aqui ainda. E isso porque tenho o meu ponto comercial, minha loja, senão já teria saído. Mudou até o perfil do comércio. Ficou voltado para o atacado.
Essa rua sempre foi tranquila, hoje não tem mais lugar nem para estacionar.
As quermesses eram muito familiares. Tinha as festas da portuguesa também, que frequentávamos direto. Eu tinha muitas amizades, na igreja mesmo, do tempo em que eu era adolescente. Muita gente mudou. Mas na festa de Santo Antônio todo mundo volta. Até gosto de ajudar nas barracas porque é um ponto de encontro, acabo revendo todos.
Meus pais eram portugueses e, como bons portugueses, eram sócios da portuguesa. A festa era bem folclórica, com danças típicas e culinária. Agora mudou muito, tem muito axé, pessoas de fora. Não é igual o que era antes. As mulheres chegavam a tirar do guarda-roupa jóias e xales para irem às festas.
Quando eles estavam fazendo o encanamento a gente brincava no barro. Não tinha essa sujeira que tem hoje. Eu lembro que sempre alagava, enchia uns 10 cm de água na rua. Enchia e esvaziava rápido. Brincávamos nessa água, que era limpa, de barquinho. Hoje, quando tem enchente só tem sujeira, são dezenas de sacos de lixo na rua que acabam entupindo os bueiros.

Q: E seus estudos? Foram aqui no bairro?
Mârlene:
Estudei no Colégio Santo Antônio. Depois de um tempo minha mãe achava que menina tinha que ficar mais presa, então ela me colocou no Santa Terezinha, que tinha mais horas, mais trabalhos manuais, coisas de menina. Hoje as meninas não sabem nada, naquela época aprendíamos na escola, a fazer barra, pregar botão. E os meninos também. Lembro que meu irmão tinha trabalho de tear no colégio.
Depois fui para o Ginásio Paulista. Fiz contabilidade, que não combinava nada comigo. Fiz também datilografia, isso porque eu não queria me separar da minha turma. Conheci meu marido nessa época, que era da mesma classe. Me formei em contabilidade e fui trabalhar no Banco Comércio e Indústria de São Paulo, onde fiquei por cinco anos.

Q: Você se casou aqui no bairro?
Mârlene:
Me casei aos 23 anos. Naquela época era moda casar em outra igreja. Casei numa igreja que caia pétalas de rosa, Santa Terezinha do Maranhão, perto da Avenida Angélica. Me arrependo porque eu fiz batizado aqui no Santo Antonio, crisma, primeira comunhão.
Meu marido é filho de escocês com português.

Q: Depois que você se casou, você continuou trabalhando?
Mârlene:
Depois que eu casei meu marido não quis que eu trabalhasse mais. Mas é duro ficar em casa sem fazer nada. Tá certo que logo engravidei, mas sempre quis fazer alguma coisa. Ai comecei a vender roupa em casa para as minhas amigas. Um fornecedor sempre me incentivou a abrir uma loja. Ele dizia que eu tinha jeito para vendas. Toda semana eu ia lá cheia de encomendas, vendia tudo muito rápido. Minha casa não tinha mais sossego. Todo mundo vinha aqui em casa, de dia e de noite, não tinha horário. Ai a parte de baixo da minha casa desocupou, que era do meu pai. Eu já tinha três filhos e pensei. Se meu pai abrisse uma portinha aqui eu punha os brinquedos das crianças aqui embaixo e as roupas, ai ficava independente da minha casa. Coloquei. Minhas amigas vinham para tomar chá, conversar e sempre acabavam comprando alguma coisa.  Aqui acabou sendo um ponto de encontro. E quem entra aqui vira amigo. Antes o estilo das roupas era hippie chic, mais para o dia a dia. Agora ficou mais direcionado para cigano.

Q: Como surgiu a idéia de fazer faculdade?
Mârlene:
Meu Marido não queria que eu trabalhasse. Eu casei, tive quatro filhos, tinha a loja, mas sempre quis fazer faculdade. Foi quando ouvi dizer que tinha faculdade de manhã, aqui do lado. E de manhã a loja não abria. Quando fui para levar meus filhos para a escola conversei com o professor deles e ele achou uma ótima idéia, tanto que me deu um tema para fazer uma redação para eu treinar para o vestibular.
Acabei não falando para ninguém porque podia ser que eu não entrasse. Tentei o curso de filosofia. Para estudar eu fiz o curso de leitura dinâmica e passei a frequentar a biblioteca Dalva de Oliveira. Eu ia pra lá de manhã e lia um pouco de tudo. Acabei passando no vestibular.
Quando eu contei para o meu marido ele não quis que eu fizesse, porque tinha os filhos e a casa para cuidar.
No intervalo das aulas eu saia e ia para a escola dos meus filhos se tivesse reunião. Acabei me dedicando bastante na faculdade.
Quando eu era adolescente eu fazia poesia para os amigos e familiares. Na faculdade teve um concurso e eu mostrei para o meu professor algumas de minhas poesias. Levei as que eu mais gostava, entre elas a do Menino Jesus. Quando eu mostrei para o professor ele escolheu outra, uma das mais simples que falava sobre mim. Acabei mandando e fui classificada, dentre mais de 900 poesias. Cheguei em casa super feliz, dizendo que eu tinha ganhado. Mas homem é insensível. Meu marido logo falou, há é? Quanto você ganhou? Ai eu respondi que só satisfação. Ele me disse "Então vai no mercado e fala que tá com a carteira cheia de satisfação para ver se eles te vendem alguma coisa".
Nos outros anos do concurso acabei ganhando também, dos três anos da faculdade. No último ano ganhei com três poesias. E dessas poesias virou livro.
Foi uma fase boa. Escrevi bastante, e a faculdade me ajudou muito. Fiquei mais intelectualizada, as poesias ficaram mais consistentes.
Tentei depois fazer sociologia, mas acabei fazendo um ano só, porque foi ficando mais difícil para conciliar a loja e outros projetos.

 
Coluna Entrevista / Edição 43
Autor: Mariana Lizott

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