Autor(a): Ricardo Eduarte |
O primeiro sapato
Até os 13 anos eu andei descalço. A palma do meu pé era tão grossa que funcionava como sola e isolante térmico. Não havia frio que me segurasse em casa. Podia pisar em cimento frio, areia da praia, água, caco de telha, mijo de cavalo, brita, pedra, o diabo!… Se fosse com o calcanhar então, apagava até bituca de cigarro sem danos. A única exceção naquele período foi quando em 1956, aos sete anos, minha mãe me matriculou no Grupo Escolar Orestes Guimarães – esquina da Hannemann com a Vauthier. Só se podia entrar na escola de sapato. Meu pai comprou um par, com costura em cima, tipo colegial, marrom. Que número eu poderia calçar naquele tempo? Não mais que 30 ou 31… Ainda é um mistério pra mim que, mesmo em fase de crescimento, com um único par eu tenha freqüentado do primeiro ao quarto ano. Acho difícil que isso tenha acontecido.
No entanto, a única lembrança que tenho até hoje era daquele par, usado só para ir à escola. Quando chegava em casa era um alívio. Ficava com os sapatos que Deus me deu: meus próprios pés, descalços, esparramados, sem arreio nem sela. Verdadeiro pégaso voando baixo pelas vielas do Pari, salvando gente em perigo, saltando vales e montanhas. Até corrida com cachorro eu disputava. Camisa só com o botão do colarinho abotoado, e os braços fora das mangas. Essa era a capa de um improvável Super-Homem, a muito custo levantada pelo vento, na corrida contra um vira-lata da vizinhança, no Caminho Velho do Pari. Por pura dó de mim – agora percebo –, o sábio vira-lata deixou que eu ganhasse algumas vezes.
Mas criança é arteira em qualquer lugar. Não é que, sem respeitar a importância burocrática daqueles benditos sapatos, no caminho da escola eu chutava porta, pedra, lata de lixo, caixa de sorvete vazia… Tudo o que podia ser chutado neste mundo era. Até bunda dos amigos… Também aprendi com os outros que batendo o pé na borda da tampinha de cerveja dá pra jogar ela pra cima, matar no peito e marcar gol de voleio. Fiquei animado com esta descoberta. Descalço não dá pra levantar tampinha. Tudo isso provocou um desgaste no sapato do pé direito. Chegou a rasgar o bico! O porteiro da escola me deu um ultimato, que contei em casa: no dia seguinte eu não poderia entrar na escola daquele jeito.
Meu pai, preocupado, foi para o trabalho com o sapato avariado no bolso. No caminho ele haveria de achar um sapateiro que pudesse consertar a tempo de eu assistir às aulas no dia seguinte. Mas como poderia não dar tempo, minha mãe e eu urdimos um plano diabólico: caso ele não chegasse até meia hora antes, poríamos esparadrapo no dedão do pé, em cima de alguma mancha vermelha de Merthiolate ou mercúrio. Eu fingiria estar mancando. Assim, mesmo acidentado, heroicamente, eu poderia assistir aula. Seria um exemplo de determinação para os fracos, imaginei.
Dito e feito. Ele não chegou e já era hora de sair. Caminhei os seis ou sete quarteirões que separavam a Rua Estiva da escola, andando rápido pela Av. Vauthier. Plano calculado, plano cumprido, perto do Orestes comecei a mancar, pisando só com o calcanhar. Já no meio de curiosos que me rodeavam e ouviam alguma mentira que eu contava sobre o que tinha acontecido, de repente, aproximou-se e parou bem na frente ao portão da escola o Bonde 49 – Linha Canindé. Dele desceu meu pai, com o sapato consertado na mão. Não teve dúvidas. Na frente dos meus colegas pegou meu pé, arrancou o curativo e calçou-me o sapato, sem meia nenhuma, porque eu não usava. Maior vergonha! Eu tinha sido desmascarado em público pelo meu próprio pai. Senti um calor subir pelo rosto. Gargalhada geral. No fim até eu ri de mim mesmo. A história virou piada na escola por toda a semana.
Mais uma bela história , que o Profissional de Relações Públicas Ricardo Eduarte, escreveu para o site " São Paulo, minha cidade" e amigavelmente manda para o nosso blog.
São histórias de um tempo difícil , de muita luta e que forjou gerações de homens e mulheres, de brio, de raça, de fibra.
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