Nostalgia por Mário Medina
Há pouco mais de 15 dias perdi minha vó paterna, Dona Leonor. Minha vó
era filha de espanhóis que chegaram ao Brasil no inicio do século
passado. De família numerosa, ao modo habitual daquela época, estudou
pouco e começou a trabalhar cedo. Também casou cedo e ficou viúva aos
28 anos, tendo que criar sozinha seus três filhos, sendo o meu pai, o
mais novo, um bebê de apenas um ano e meio.
Mas não pense o leitor que esse artigo se trata de uma nota de
falecimento. Só achei por bem começar o texto falando da trajetória de
minha avó pois foi pensando nela que me peguei relembrando passagens
da minha infância, memórias dos dias que passava em sua casa, no Pari,
bairro no qual, embora eu não tenha nascido, vivi dos dois anos em
diante.
Minha vó vivia numa casa térrea e pequena, ao fundo de uma comprida
vila de casas na rua Olarias. Vez ou outra passava o dia com ela.
Ficava vendo televisão enquanto ela passava a maior parte do dia
sentada diante de uma máquina de costura. Minha vó era costureira de
cortinas.
Agora que perdi minha vó ha tão poucos dias, sou tomado por uma
natural nostalgia daqueles tempos. Lembro do forte cheiro adocicado da
fábrica de biscoitos que havia no quarteirão de trás. Naquele tempo o
Pari era um bairro mais ameno, um bairro residencial, com muitas casas
de muro baixo com jardins a frente.
Agora o Pari é uma continuação mal acabada do que o Brás foi por muito
tempo seguido, ou seja, uma região de comércio pujante, com escassos
moradores; lugar de muita movimentação durante o dia e de ruas quase
desertas no período da noite.
Natural que as coisas mudem com o tempo, e mais natural ainda que eu
tenha nostalgia do Pari da minha infância, o Pari antigo, dos campos
de várzea, das praças apinhadas de crianças, dos botecos de esquina
onde a gente parava pra pedir água... (naquela época a gente bebia
água da torneira mesmo, não me lembro de comprar água mineral).
Por quase uma década vivi com minha família numa casa razoavelmente
grande na rua Padre Lima. Lá a gente brincava nas ruas com alguma
tranqüilidade; as famílias sentavam a frente das casas enquanto as
crianças jogavam bola ou andavam de bicicleta. Lá eu interagia com
meninos que moravam num cortiço do outro lado da rua. De lá, por
exemplo, me lembro de uma família de onze filhos, todos com nomes que
começavam com a letra M. Depois morei na rua da Madeira. E, depois, na
Monsenhor Andrade.
Mas o Pari das minhas memórias infantis nao é tão curioso quanto o
Pari das histórias inusitadas. Uma das minhas tias, durante o velório
da mãe, em meio a uma mórbida conversa, dizia que não desejaria ser
cremada depois de morta, e, como argumentação, evocava a memória da
historia de um conhecido que morava na rua Rodrigues dos Santos e que
quase fora enterrado vivo.
No tempo da febre amarela, o homem, internado no hospital da Santa
Casa, depois de tido como morto, foi colocado numa sala com muitos
corpos que seriam enterrados no dia seguinte. No meio da noite o
sujeito despertou, pulou o muro do hospital e foi pra casa. Bateu na
porta mas a mulher, apavorada, não abria. A mulher, desesperada e aos
prantos, gritava ao marido que voltasse ao mundo dos mortos, que ele
não estava mais vivo, que fosse embora dali. A filha teve que acalmar
a mãe e abrir a porta ao pai. Minha tia conta que o homem ainda viveu
muito depois do incidente, que morreu depois da mulher, inclusive.
Hoje tendo a ver o Pari de forma mais amarga, e me ressinto
sobremaneira de ver que com o tempo não veio a virtude. É duro ver que
o bairro abriga uma classe média rancorosa e reacionária. Porque eu
tenho saudade do Pari da minha infância, mas não suporto o Pari dos
velhos bairristas, malufistas ou tucanos, todos eles uns chatos; o
Pari dos senhores que xingam o Haddad porque não querem conviver com
os refugiados haitianos ou com os imigrantes bolivianos, por exemplo.
Tenho amor pelo Pari dos meus dias juvenis, dos meus tempos de
adolescente, quando ia com os amigos comer os lanches gordurosos da
Balneária. (Agora eu sou um rapaz mais saudável, garanto).
Uma vez, voltando do Rei das Esfihas com três amigos, levei uma batida
da policia, memorável de tão engraçada. Eu estava com um rosário no
bolso. O policial, na hora da revista, tateou-o e perguntou do que se
tratava. Falei que era um rosário. O soldado puxou aquele rosário
enorme e o meu amigo Edu caiu na risada. O Edu era chamado de Soneca
também. Tinha as pálpebras meio caídas, era cabeludo e muito magro.
Quase apanhou da PM nesse dia...
Quando chegamos a casa do Ricardo, não sabíamos do que riamos mais; do
incidente com a policia ou de um acontecimento anterior no
restaurante. Acontece que naquela época o Rei das Esfihas era menor e
tínhamos que esperar vagas de mesas. Umas meninas bonitinhas
desocuparam uma, e, antes que o Tadeu, lendário garcon pariense,
limpasse a mesa, nos sentamos e eu comi uma coxinha que fora deixada
ali quase intocada, com apenas uma mordida.O pessoal me chamou de
nojento, tirou o maior barato. Eu não tava nem ai... Ah os jovens...
meu Deus... É deste Pari que tenho saudades.
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